D. Manuel Clemente, Bispo do Porto
Solidariedade é viver para o bem comum
Numa altura em que se desmonta o binómio antes
assegurado entre ensino-profissão, o Bispo do Porto defende uma
educação virada para a «pessoa humana», capaz de dotar os que
aprendem de uma maior capacidade inovadora. D. Manuel Clemente
afirma ainda que a indisciplina é sinónimo de irresponsabilidade,
mostrando-se partidário de uma educação personalista capaz de
contrariar os valores do individualismo e da massificação. Com uma
agenda repleta de solicitações, entre as jornadas mundiais da
juventude em Madrid e a intensa actividade pastoral na sua diocese,
aceitou responder por escrito às questões endereçadas.
No seu livro «Porquê e Para
quê? - Pensar Com esperança o Portugal de hoje», a páginas tantas,
cita uma frase que proferiu durante a entrega do Prémio Pessoa que
o distinguiu em 2009: «O melhor de Portugal pouco aparece. E não
abre geralmente os noticiários. Mas existe e por ele mesmo
continuamos nós a existir. Apesar de tudo, mas não apesar de nós».
Quer com isto dizer que esta espécie de depressão colectiva que
afecta o nosso povo é fruto de uma mensagem que é deturpada pelo
mensageiro, neste caso, os órgãos de comunicação social, e que há
um «outro» Portugal por desvendar?
A comunicação social participa da
mentalidade global que é de contraste, não de consenso.
Compreende-se isto, porque a nossa cultura (mentalidade +
sensibilidade) é liberal - hoje quase libertária - e desconfia de
unanimismos que ponham em causa a decisão individual. Tem algumas
razões para isso, mas, no caso da nossa auto-imagem colectiva,
resvala facilmente para o decadentismo ou o confronto e não
valoriza suficientemente os sinais positivos e consensuais, que de
facto existem. No sector do ensino, o contacto com escolas estatais
ou não-estatais demonstra-me muita vontade de progredir, integrar e
inovar, por parte de vários elementos da comunidade pedagógica. E
bons exemplos não faltam.
Segundo dados recentemente
divulgados, Portugal tem cerca de 2 milhões de pobres e quase 13
por cento de desempregados. Com que meios conta a Igreja,
debatendo-se também com a diminuição dos donativos para dar
resposta a um contexto social tão adverso?
O principal contributo da Igreja à
sociedade, em qualquer contexto, é a motivação cristã. Só esta
explica que na generalidade das paróquias, associações e movimentos
católicos surjam ou se mantenham iniciativas solidárias com grande
número de voluntários, que aumentam quando é mais preciso. É o
caso, por exemplo, do que tem sucedido na distribuição de refeições
gratuitas.
Os mais carenciados são
sempre os mais visados com o endurecer das medidas de austeridade
propostas pela troika. Alimentação, vestuário e medicamentos, são
as principais necessidades de quem tem menos?
Alimentação, vestuário e
medicamentos, correspondem a necessidades básicas que têm de ser
imediatamente atendidas. Não admira que a acção social da Igreja e
doutras instâncias incida mais nesses campos, sobretudo em tempo de
"crise".
O Bispo Auxiliar de Lisboa,
D. Carlos Azevedo, alertou para a imperiosa necessidade de existir
em cada paróquia um grupo de acção social para fazer frente às
dificuldades e aos crescentes casos de privação.
Subscreve?
O ideal é que qualquer comunidade
cristã seja, já por si, um "grupo de acção social".
Evangelicamente, não pode ser outra coisa, mesmo que se criem
organismos específicos e oportunos.
Solidariedade social é uma
palavra que faz cada vez mais sentido numa sociedade crescentemente
dual e em que os valores do individualismo ganham
terreno?
A solidariedade significa que não
existo sem os outros e vivo para o bem comum. Creio que a actual
situação, tanto local como internacional, não deixa margem para
dúvidas nem atrasos neste ponto. Cabe à cultura e à pedagogia em
geral tirarem daqui a devida conclusão e consequência.
Revolta, medo e insegurança
são sentimentos que se apoderam das pessoas. Até à data não temos
registado convulsões sociais nas ruas, ao contrário, por exemplo,
do que sucede na Grécia. Teme que o clima de contestação social
adquira uma agressividade ainda não vista depois do
Verão?
O medo e a incerteza aumentam a
agressividade. É absolutamente necessário que os responsáveis
políticos e sociais dêem informações claras e constantes do que se
faz e pode fazer para superar positivamente as actuais
dificuldades.
A Igreja tem cada vez menos
padres e a crise de vocações tem-se agravado. Significa isto que a
Igreja Católica está a ter dificuldade em renovar-se?
Os padres e outras "vocações"
provêm das famílias e das comunidades. Além doutros factores,
quando as famílias têm menos filhos e filhas é natural que surjam
menos padres e freiras. Quando as comunidades se dispersam e as
vidas se tornam mais itinerantes, é natural que o serviço
comunitário se dilua, sobretudo como vocação e compromisso para
toda a vida.
A abertura do debate sobre
a ordenação de mulheres sacerdotes e a abordagem do tema do uso do
preservativo poderia cativar, nomeadamente, mais jovens para a
partilha e difusão da mensagem cristã?
O lugar da mulher e as questões da
sexualidade estão geralmente presentes nos debates, dentro e fora
da Igreja. Quanto ao primeiro, ultrapassa muito o ponto da
ordenação ou não ordenação de mulheres, pois respeita à questão
prévia da valorização do feminino como feminino e do masculino como
masculino, em igualdade complementar. Questão que está longe do
esclarecimento na sociedade em geral. Quanto à sexualidade, o que
mais importa é percebê-la como dimensão interpessoal, que não se
pode reduzir a práticas superficiais ou episódicas. O que se deve
"preservar" é, antes de mais, a dignidade da pessoa humana.
Justifica-se a realização
de um novo referendo ao aborto, como foi admitido pela Conferência
Episcopal?
O referendo é uma possibilidade
constitucional e democrática. No caso do aborto, creio ser
necessária, prioritariamente, uma grande pedagogia cultural sobre a
vida humana como valor básico. Quando dispomos duma evidência
científica claríssima sobre o processo vital, quando começa e como
se desenvolve, da concepção à morte natural, temos de ser
consequentes no campo social e jurídico, para defender e promover a
vida, sobretudo no apoio aos casos mais difíceis. Também aqui a
solidariedade é uma palavra-chave, pois nos obrigará a muito maior
presença e envolvimento na resolução positiva das dificuldades.
Para apoiar a vida, que é sempre um valor básico, mesmo que menos
capacitada física ou mentalmente. É uma fronteira de defesa activa
e absoluta.
Admite que a perda de
solidez do tridente: família, Igreja e escola, pode ser responsável
pelo aumento dos casos de indisciplina e comportamentos desviantes
que se assiste em alguns sectores da juventude?
A indisciplina é outro nome da
irresponsabilidade. Quando os vínculos sociais se afrouxam -
famílias, comunidades religiosas, escolas, etc. - é mais fácil que
cada um se sinta menos responsável (= devedor de resposta) em
relação aos outros. Urge uma educação personalista, em que cada um
se descubra e revele na relação com os outros; todos como "pessoas"
insubstituíveis, muito além das abstracções opostas do
individualismo ou da massificação.
Nas suas intervenções tem
criticado o facto de a Educação ter um pendor menos humanista e de
o saber ser transmitido de forma fragmentada. Quer concretizar o
seu ponto de vista?
O humanismo requer uma educação que
tenha sempre em conta a "pessoa humana" que cada educando ou
educador realmente são, ao mesmo tempo receptores e portadores da
herança cultural colectiva, onde entram saberes teóricos e
práticos, tradições culturais e religiosas, modos de agir em
sociedade e interagir com os outros. "Antes" do engenheiro está a
pessoa que exerce engenharia, "antes" do filósofo está a pessoa que
pensa… As presentes dificuldades no campo do emprego desmontaram a
ligação garantida ensino-profissão e há muitos exemplos de como
alguém humana e humanisticamente capacitado tem maior capacidade de
procura e inovação profissional.
O êxito no sistema de
ensino é chave para uma sociedade mais dinâmica e com os seus
integrantes mais preparados para uma vida em cidadania
plena?
A educação e o ensino são o portal
e o átrio da vida social. Requerem a participação de todos os
agentes de socialização e o melhor do que nos garanta o futuro
aonde ele precisamente começa, ou seja, nos mais novos.
Nuno Dias da Silva
Rui Duarte Silva / Expresso