Maria de Belém Roseira, deputada
«Sociedades menos instruídas têm cidadãos»
A sua carreira pública é
um exemplo de sucesso em diversos quadrantes. Maria de Belém
Roseira, que agora se lança na primeira aventura literária em
solitário, elogia o talento e a inteligência do género feminino,
mas defende que a sua participação, nomeadamente na esfera
empresarial, é ainda muito reduzida. A ex-ministra debruça-se
também sobre esse «problema estrutural gravíssimo» chamado
qualificação e crítica a falta de estabilidade nas políticas de
ensino e saúde.
Muitos se interrogam sobre
o motivo pelo qual só agora lança o seu primeiro livro. Quer
explicar-nos a razão do timing?
Este livro resulta de um convite da
editora Esfera dos Livros e a explicação para escrever este livro
tão tarde deve-se ao facto de não ser esta a minha actividade
principal. Os cargos políticos que ocupei e ocupo e as múltiplas
actividades em que estou envolvida, tiram-me espaço para
concretizar um trabalho que carece de reflexão, tempo e maturação.
Eu tenho colaborado imenso em alguns livros, prefaciado outros,
escrevo artigos e contributos sobre temas mais diversos. Neste caso
concreto, é meu, integralmente.
Em «Mulheres Livres»
escolheu 12 senhoras excelentíssimas, sendo duas delas portuguesas.
Que critérios presidiram à formação desta espécie de "equipa de
sonho"?
Foram vários. Para começar,
mulheres que se tivessem destacado em diferentes ramos de
actividade pública, em particular no século XX. Da ciência, à
política, passando pela literatura, a pintura, a filosofia, a
dança, etc. Nós sabemos que temos muitas heroínas que vão
permanecer anónimas, mas outras há que, pelo contexto e pela
publicitação da sua actividade, acabaram por se tornar conhecidas
um pouco por todo o mundo.
A questão da nacionalidade
foi tida em conta?
Sem dúvida, a vivência em
diferentes espaços geográficos foi outro dos critérios envolvido.
Da Europa, América do Norte e do Sul, sem esquecer o Oriente. No
último caso, foi incluída Benazir Bhutto, a antiga
primeira-ministra do Paquistão. Não foi esquecido o factor cultural
e religioso e, para além disso, não menos importante, decidi
escolher personalidades que já tivessem falecido. A única excepção
é a Simone Veil, porque foi muito marcante em França na questão dos
direitos das mulheres. Seria um desperdício não evocá-la.
Júlio Machado Vaz, o
conhecido sexólogo, disse na apresentação oficial deste seu
trabalho que estamos perante um «livro de combate». Revê-se nesta
análise?
É de combate porque o exemplo que
estas mulheres constituem habilita muito as outras a serem mais
corajosamente assumidas, porque nem sempre as mulheres o são. Elas
são educadas para se esconder, para se diminuir e para não
aparecer, e creio que este livro pode servir para inspirar muitas
pessoas a avançarem com o seu projecto de vida, independentemente
dos constrangimentos que a sociedade, a família ou o meio em que
vivem lhes possam levantar.
As mulheres portugueses
representadas no seu livro são Beatriz Ângelo, a primeira mulher a
ter direito de voto e que recentemente viu o seu nome baptizar o
novo Hospital de Loures, e Maria de Lourdes Pintassilgo, a primeira
mulher a desempenhar o cargo de chefe de governo e que também foi
candidata à Presidência da República. Pensa que os portugueses
desconhecem as suas heroínas?
Os portugueses desconhecem muitas
das suas heroínas e também muitos dos seus heróis. No caso do meu
livro eu decidi abordar as histórias particulares das nossas
heroínas, até pelo carácter tão particular de em ambas as situações
o; meio em que nasceram ter condicionado decisivamente os seus
comportamentos futuros.
Ambas têm um enquadramento
político muito forte. Foi essa circunstância que moldou as suas
personalidades de lutadoras?
Creio que sim. Beatriz Ângelo nasce
num meio de grande consciência política o que acaba por potenciar o
seu alcance em termos de intervenção pública. É uma mulher
republicana que encontra no seu marido um apoio e um companheiro de
lutas. É com o desaparecimento do seu marido, muito precoce, que
ela fica como chefe de família, algo verdadeiramente inédito. A
legislação em vigor não distinguia se o chefe de família era homem
ou mulher. Por defeito era sempre o homem, até porque, no início do
século XX, as mulheres não eram autónomas do ponto de vista
financeiro.
O que é que faz de Beatriz
Ângelo uma portuguesa de excepção?
Ela foi pioneira em quase tudo. Foi
também a primeira médica-cirurgiã no nosso país. No que diz
respeito aos direitos da mulher ela invoca a lei para se inscrever
nos cadernos eleitorais. Esta pretensão foi recusada. De imediato,
recorre da decisão e, curiosamente, o juiz a quem foi distribuído o
processo era pai de Ana Castro Osório, outra combatente pelos
direitos das mulheres. O recurso foi deferido pelo magistrado e
Beatriz Ângelo acaba por conseguir votar. Tratou-se de um marco com
grandes repercussões na Europa, tendo recebido felicitações de
outras mulheres que procuravam seguir o seu exemplo. A lei é mudada
em Portugal, passando a permitir que as pessoas do sexo feminino
participem no sufrágio.
Este caso concreto passa a
mensagem que vale a pena lutar pelos nossos direitos?
Essa é uma mensagem, mas há outro
ponto que eu gostaria de destacar: quando menos se espera,
verificam-se retrocessos civilizacionais, não há nada garantido.
Por isso é indispensável que não nos conformemos com aquilo que
foram as conquistas conseguidas à conta de muito desconforto,
incompreensão e coragem. Os direitos nunca estão definitivamente
consolidados, como tal, creio que devemos estar permanentemente
vigilantes, aprofundá-los e estimular uma consciência social para
evitar que se ceda à tentação de retirar um direito que parece ser
básico e inalienável.
O que está a referir é que
a sociedade resiste à mudança por entender estes combatentes pelos
direitos civis como ameaças?
Há sempre uma resistência
relativamente a este movimento de progressão de aceitar os
argumentos e as pretensões de pessoas mais estruturadas, mais
capazes, mais autónomas e mais livres. Porque muitas vezes a
liberdade dos outros põe em causa aquilo que é muito mais
confortável que é dar ordens sem contestação.
Na véspera desta nossa
conversa, fez-se história e atingiu-se mais um marco para as
mulheres. Foi nomeada a primeira Procuradora-Geral da República
mulher, Joana Marques Vidal, um ano depois de Assunção Esteves ter
chegado ao lugar de Presidente da Assembleia da República. São
sinais inequívocos de que as mulheres estão a impor-se pelos seus
méritos?
O problema do défice de presença
das mulheres em cargos de relevo ainda não está ultrapassado.
Simplesmente por se enfatizar que a nova PGR é mulher é sintoma de
que o problema ainda se mantém. Mas constato que os avanços mais
recentes são muito positivos. O caso da nomeação da nova
Procuradora-Geral da República é duplamente especial para mim
porque tirei o curso de Direito em 1972, época em que não podia
haver mulheres na magistratura, nem na carreira diplomática. 40
anos depois o cenário é completamente diferente.
Já não é possível esconder que a
inteligência, a cultura e as capacidades de uma mulher têm que ser
postas ao serviço do bem comum. Dantes reservava-se as competências
da mulher para o espaço privado. Elas estavam fechadas. Hoje a
sociedade pode beneficiar dos seus talentos.
Admite que num futuro não
muito distante possamos ter um chefe de Estado mulher?
É sempre possível. A democracia
abriu-nos essa porta e proporciona espaços de afirmação das
liberdades e dos direitos fundamentais. Para alem disso, como a
questão da desigualdade de direitos em relação às mulheres
prende-se com os direitos humanos e só as democracias permitem o
seu aprofundamento, significa que temos o ambiente adequado para
isso.
Por falar em candidatas a Belém, Leonor Beleza, que
também apresentou o seu livro, disse que a participação política e
empresarial das mulheres é ainda «miserável».
Subscreve?
É baixíssima, sobretudo no meio
empresarial. No panorama político a situação é diferente porque há
uma obrigatoriedade das listas terem uma composição mais
equilibrada. Sem essa regra estou em crer que o panorama seria
desequilibrado. Nas empresas isso não existe. Nas empresas
portuguesas, bem como noutros países da Europa, existe um número
muito reduzido de mulheres ao nível dos mais altos cargos. A
própria China tem uma média superior de participação de mulheres
nos órgãos directivos de empresas, em comparação com Portugal,
França ou a Inglaterra. A excepção reside nos países nórdicos, que
começaram muito mais cedo esta batalha e impuseram regras de
participação mais equilibradas.
Tem havido progressos ao
nível da igualdade de género, mas em oposição, a desigualdade
económica e social acentua-se a níveis preocupantes, podemos mesmo
dizer insustentáveis. Como pessoa; intimamente ligada aos assuntos
sociais teme que a busca do equilíbrio financeiro a todo o custo
leve a um deslaçamento social?
Esse é um dos maiores riscos. O
desemprego é o mais preocupante, registando um ritmo de crescimento
galopante. E tem um efeito desestruturador, a nível individual,
familiar e socialmente, sem esquecer a parte económica, na medida
em que o desempregado vai buscar à riqueza nacional uma parte para
a qual, infelizmente, não contribuiu. Trata-se, pois, de uma
tragédia sob todos os pontos de vista. Tem um problema acrescido
que é o de agravar os problemas de saúde das pessoas. Sempre fomos
dos países mais desiguais no seio da União Europeia, só que agora
colocados perante programas muito centrados em objectivos globais,
independentemente do seu impacto nas pessoas, - entendido como um
dano colateral - provoca um agravamento do fosso das
desigualdades.
Onde fica a sensibilidade
social da política e dos políticos?
A política existe para a construção
do bem comum, não existe para o poder ser exercido pelo poder. O
poder é conferido para minorar as dificuldades das condições de
vida das pessoas e proporcionar o seu desenvolvimento. Daí que eu
preconize que num mundo interrelacionado e globalizado o espaço
europeu é fundamental que tenhamos com ele um diálogo político no
sentido de adequar os programas de austeridade às condições
especificas dos países.
Os programas formatados da
troika não ajudam…
É evidente que programas idênticos
para países com situações sociais muito distintas não podem dar os
mesmos resultados. É essa formatação excessiva dos programas da
troika, independentemente do tecido social aos quais se aplicam,
que está a ser causadora de um ambiente terrível e com convulsões
sociais que estão à vista.
A insistência no mesmo tipo
de receita pode acentuar o plano inclinado em que
estamos?
O sucesso destes programas mede-se
pelos seus resultados. Se os resultados são maus porque não
reequacionar o programa? Seria uma atitude inteligente.
Mitigar a austeridade seria
um mal menor?
Eu não gosto do termo austeridade,
prefiro o termo equilíbrio orçamental. Porque austeridade, em meu
entender, tem um juízo moral e creio que não devemos fazer juízos
morais sobre os outros porque desconhecemos as suas circunstâncias.
Já o dizia o Confúcio que «não julga uns nem outros, a única coisa
que faz é avaliar as circunstâncias».
E quais são as nossas
circunstâncias concretas?
As circunstâncias de cada povo
determinam a situação em que ele se encontra. Portugal tem
problemas estruturais gravíssimos, designadamente ao nível da
qualificação das pessoas, que não é culpa desta geração, é
porventura responsabilidade de toda a nossa história centenária.
Tirando o enorme esforço feito na I Republica, e que erigiu as duas
universidades de Lisboa e Porto, os dirigentes não têm valorizado
que é essencial investir na formação das pessoas.
Esse é um problema só
português?
A Alemanha e a Inglaterra começaram
esse esforço muito mais cedo, mas tiveram quem os liderasse de
outra maneira, com outra visão estratégica e de longo prazo. Nós
tivemos avanços e recuos, suportámos 48 anos de uma ditadura que
considerava que pessoas instruídas eram um problema político. Isto
para dizer que não podemos ser julgados por dramas estruturais que
têm a sua origem num passado muito distante.
Lamentavelmente ainda existem pais
que não estão conscientes da importância do investimento na
formação dos seus filhos. Há famílias com níveis de literacia muito
baixos, reduzidas expectativas e diminuto grau de exigência
relativamente aquilo que é o investimento e promoção da nossa
capacitação. Sociedades menos instruídas têm cidadãos com menos
capacidade crítica. O grande drama é esse, na medida em que afecta
tudo o resto.
De que modo condiciona o
modo como nos comportamos e as rotinas do dia a dia?
Condiciona a forma como nos
relacionamos uns com os outros e a forma de estar no trabalho. O
défice de instrução tem consequências na capacidade de organização,
na produtividade, no gosto pelo cumprimento de regras, na
pontualidade, no cumprimento de prazos, etc.
A educação e a justiça são
as maiores pechas do sistema democrático?
Creio que a educação está a fazer o
seu caminho. Hoje temos muito mais gente no ensino, especialmente
nas universidades, do que alguma vez tivemos. Temos as gerações
mais jovens e mais capacitadas de sempre. O pior é que num cenário
de crise não possuímos um tecido económico capaz de absorver quem
sai das universidades. Quanto à justiça, devo dizer que é aquilo
que faz com que um povo esteja de bem com ele próprio. E nós, nesse
domínio, temos demasiadas angústias. Ambos os sectores têm
problemas que levam muitos anos a resolver. É fácil destruir, mas
construir é muito difícil.
A sucessão vertiginosa de
governos e titulares de pastas dificulta a adoção de políticas
coerentes?
A educação e a saúde são áreas
cruciais onde é fundamental existir estabilidade política. E
porquê? Porque os resultados medem-se a longo prazo e não de ano a
ano. Portanto, se estamos sempre a mudar não é possível beber da
avaliação dos resultados. Desde o 25 de Abril, quem entra num
governo quer sempre desfazer o que construiu o seu antecessor,
quando o que se deve fazer é ter a preocupação de manter as linhas
essenciais para não haver convulsões que são desestabilizadoras.
Isso reflecte-se, especialmente, nos sistemas de maiores dimensões,
com reflexos sobre quem neles trabalha e sobre os seus
destinatários. É preciso ter a consciência que quem desfaz o que
estava feito, recomeça sempre um passo atrás do que o anterior
deixou.
Educar para a saúde é um
ponto preponderante no mundo moderno. Será possível concretizar
este objectivo quando as pessoas se confrontam com dificuldades no
acesso à saúde por falta de dinheiro? Como se gere de forma
racional um sistema que lida com emoções?
O sistema de saúde tem que ser
gerido com inteligência e sensibilidade. Assegurando que a pressão
não rompa equilíbrios estabelecidos, não subverta a ordem das
prioridades e que ganhe as pessoas para a justiça das medidas. Este
é um sector em que é necessária uma grande concertação social, em
especial junto dos utentes e dos profissionais de saúde. Importa
não esquecer que a saúde depende muito da educação e das condições
sociais, do comportamento das famílias, do ensino que a escola nos
transmite, etc. O artigo 64.º da Constituição no n.º1 diz: «Todos
têm direito à protecção na saúde e o dever de a defender e
promover». E ensina-nos a experiência que defender e promover a
saúde é mais fácil para as pessoas bem qualificadas do que para as
pessoas pouco qualificadas, bem como é mais fácil para as pessoas
com bons rendimentos do que para as pessoas com parcos rendimentos.
Por isso, defendo que as políticas têm que ir ao encontro da
protecção e sensibilização dos grupos mais vulneráveis.
Infelizmente, vejo muito pouco esta preocupação.
Ainda teme que estejamos no
caminho do desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde
(SNS)?
O ministro da Saúde garante-me que
está muito preocupado com a manutenção e desenvolvimento do SNS.
Confio nos seus propósitos e tenho todo o gosto em contribuir,
sempre que sou solicitada, nesta época em que a pressão para cortes
é tão grande, que esses cortes sejam introduzidos de forma
inteligente, racional, sensível e, sobretudo, num ambiente de
grande diálogo. Até porque importa não descurar que a saúde é um
instrumento estratégico para dinamizar a economia, na medida em que
incorpora investigação, o mais alto valor acrescentado, etc. Nós
podemos vender serviços de saúde em algumas áreas onde temos a
excelência demonstrada. Temos, pelo menos, condições para isso.
Foi presidente da primeira
comissão de inquérito ao BPN, um dos processos mais gravosos para o
erário público. É por escândalos destes que a opinião pública
demonstra maior relutância em aceitar os sacrifícios?
As pessoas sentem revolta e
desmotivação porque vêem que estão a pagar à custa do seu esforço
os erros de outros, muitos vezes os crimes de outros, que acabam
por não ter o ressarcimento social devido. O caso do BPN perturba e
incomoda muito as pessoas. Noutros países temos visto que
indivíduos que cometeram crimes e usaram indevidamente o sistema
financeiro foram julgados e condenados, enquanto por cá não
aconteceu ainda nada. É isto que tem que mudar.
Nuno Dias da Silva
António Cotrim - Lusa