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Jornal do Concelho de Oleiros | Francisco Carrega | Periodicidade: Trimestral | Novembro 2024 nº92 Ano XXIII
Adriano Moreira, em entrevista
Memórias de Adriano

AdrianoMoreiraDeAlbertoFrias2008 copy.jpgAdriano Moreira é um dos portugueses mais respeitados quando se fala de ensino e universidades. Foi quase tudo nesta área e sem o seu impulso provavelmente o rosto do ensino superior português não seria o que conhecemos. Ao «Oleiros Magazine» partilhou o seu infinito saber, sobre este e outros domínios, bem como as suas dúvidas e inquietações relativamente a este «Estado exíguo» chamado Portugal.

 

O Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) ainda hoje é conhecido como «a escola de Adriano Moreira», instituição na qual foi diretor e professor catedrático. Quer partilhar connosco a atribulada história e as sucessivas mudanças de designação desse que ainda hoje é um baluarte das ciências sociais e políticas em Portugal?

Deixe-me fazer uma reflexão prévia: importa recordar que durante séculos Portugal teve apenas uma universidade: a Universidade de Coimbra. O vasto império não tinha ensino superior em nenhuma das ex-colónias, exceto em Goa, onde havia uma escola médica, mas que atribuía títulos que não eram reconhecidos como formação completa na metrópole. Com o passar das décadas o mundo tornou-se mais complexo e creio que acompanhámos essa evolução com atraso. A minha interferência nessa instituição, que no início da década de 50, se chamava Escola Superior Colonial, resultou de alguns fatores, a começar pela minha visita a África e posteriormente pelo tempo que acumulei como membro da delegação portuguesa nas Nações Unidas. Foram experiências que me deram uma visão que o ensino teria, necessariamente, que acompanhar a perspetiva de mudança que se desenhava.

 

Em concreto, qual foi o novo paradigma que introduziu?

Em vez de uma escola de quadros, como era a Escola Superior Colonial, precisávamos realmente de uma escola de ciências sociais e políticas que correspondesse à mudança que se acelerara, sobretudo depois da última Grande Guerra Mundial. Foi deste modo, com a concordância do Almirante Lopes Alves (que era ministro do Ultramar) e do professor Raúl Ventura (docente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e subsecretário de Estado do Ultramar) que começámos por criar um centro de estudos políticos e sociais na junta de investigação científica do ultramar, cujo método era organizar esses centros numa escola ou faculdade para que ela desenvolvesse, na sua área, os problemas que mais interessavam ao país.

 

Mais tarde chegou a ministro e o seu ímpeto reformista não foi bem visto pelo poder político de então…

Quando fui ministro pude transformar essa minha ideia em realidade, com a concordância dos reitores da Universidade Técnica de Lisboa e da Universidade de Coimbra, os professores Moisés Amzlak e Braga da Cruz, respetivamente, bem como da Universidade do Porto. A este processo opôs-se o reitor da Universidade de Lisboa, o prof. Marcello Caetano. Apesar disso, a universidade foi reconhecida e o currículo reorganizado. As ciências que me pareciam necessárias eram em primeiro lugar as relações internacionais (que sempre condicionaram muitas vezes severamente - Portugal), a ciência política (o império euromundista estava em busca de uma formulação de governo) e, só mais tarde, a estratégia. Foram essas três áreas de que me ocupei. Posteriormente, fundei as duas primeiras universidades do Ultramar Português: os Estudos Gerais Universitários de Angola e Moçambique - um nome que não considero feliz, porque foi adotado para dar ideia que era o mesmo espírito europeu que levava a utilizar esta designação. Por grandes resistências que se verificaram na área política em Lisboa estas instituições ficaram condicionadas a uma experiência de 3 anos. Se a experiência fosse bem sucedida ficaria com o currículo completo e foi isso que se verificou.

 

Foi uma experiência pioneira e inovadora…

Usámos ainda outra técnica inovadora, à época, que foi a seguinte: a Universidade de Coimbra assumiu o patrocínio da Universidade de Moçambique, que se traduziu no fornecimento do corpo docente, na sua maioria muito jovem. Receberam bolsas de estudo, formaram-se e estava-lhes garantido que o grau hierárquico que tivessem na carreira quando acabasse o seu período em Moçambique era o mesmo grau com que entravam na Universidade de Coimbra. O mesmo se fez para Angola com a Universidade Técnica, que assumiu o patrocínio relativamente a esta entidade do então Ultramar. Isto significa que houve um movimento de grande solidariedade.

 

Da década de 60 até aos nossos dias, destaca alguma conquista do ensino superior nacional?

De então até agora, multiplicaram-se as faculdades e as universidades, nomeadamente nas áreas em que fomos pioneiros. Creio que falta apenas neste momento que o Instituto de Estudos Superiores Militares seja reconhecido com estatuto universitário e que o seu diretor passe a pertencer ao Conselho de Reitores. Isto porque estamos num momento de grande crise e é necessário, a meu ver, repensar e racionalizar a rede nacional de ensino superior. Tem sido difícil convencer os sucessivos governos de que a rede nacional engloba a rede pública de universidades e politécnicos, a que tem de se somar a rede privada e cooperativa, a rede católica e a rede militar. Sem esta racionalização, que as próprias circunstâncias do País exigem, não aproveitaremos devidamente a capacidade que precisamos de ter para enfrentar a mudança radical que se deu no mundo depois da experiência de instalação no ensino superior nas antigas colónias.

 

Defende uma racionalização integrada e global?

Tudo tem de passar pela rede. O conceito de rede está a ser aceite e debatido em profundidade pelo Conselho de Reitores. Urge fortalecer a rede à luz das dificuldades que Portugal atravessa e o ensino superior não é imune. É preciso entender que não há uma rede pública, há uma rede nacional que é preciso racionalizar. Não menos importante, creio que é preciso repensar a maneira como o Processo de Bolonha foi aplicado em Portugal.

 

AdrianoMoreira2DeAlbertoFrias2008 copy.jpgQue principais críticas tece a este processo?

Como sabe entre os argumentos teóricos para defender este Processo de Bolonha um deles era que o mercado exigia uma formação mais rápida dos estudantes, mas as circunstâncias estão a mostrar que foi completamente errada essa perspetiva. Por outro lado, deu-se muito relevo ao ritmo do ensino (3+2 ou 4+1) esquecendo-se os outros. Bolonha é ritmo mais melodia. Era imperioso modificar os programas. Há fatores históricos que mereciam ser tidos em atenção. O fim do império - não só do português, mas o do império euromundista (porque os titulares do poder colonial eram os países da frente marítima atlântica) - desvalorizou as fronteiras geográficas, passando as fronteiras de interesse a serem, nos dias de hoje, dominantes. É essa uma das razões que leva tão frequentemente a falar do globalismo, embora não haja nenhuma definição fiável. Devemos encaminhar as universidades para aquilo que o ex-reitor da Universidade de Coimbra, Fernando Seabra Santos e o Reitor da Universidade de Brasília (NDR: Naomar de Almeida Filho) chamaram num livro, que eu prefaciei, editado em dezembro, de «a quarta missão» da universidade.

 

No que é que se traduz essa «quarta missão»?

As universidades, até há pouco, fixavam-se nas exigências do país, até porque as fronteiras eram geográficas. Hoje, tudo mudou e deparamo-nos com as fronteiras não geográficas do globalismo, que ficam algures. E este cenário não existe só nas universidades, passa-se na Defesa, Segurança, nos mercados, etc. Os novos horizontes exigem uma nova consideração, nomeadamente na definição dos currículos, definição das profissões, no esclarecimento à juventude para que ela decida em liberdade informada qual é a via que deve optar e, ao mesmo tempo, além desta visão universal, há uma perspetiva particular em relação ao país: até fins do século passado, os estudos da ONU, sobretudo do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), referiam-se a países abaixo do Sahara. Neste momento, a fronteira da pobreza passou para o norte do Mediterrâneo. Portugal está na fronteira da pobreza. Foi abrangido por essa fronteira. Por isso, faz parte da «quarta missão» da universidade. É preciso conciliar e racionalizar o desafio que é global, com a absoluta necessidade de resgatar o país da situação de pobreza em que se encontra.

 

Como é que vê o fenómeno da fuga dos nossos jovens mais qualificados para o estrangeiro?

Para começar, acho um erro que um membro do governo incite à emigração os nossos melhores. Mas também acho que as pessoas têm o direito e o dever de procurar assegurar o seu futuro e dos seus descendentes pelos quais são responsáveis. Mas o meu maior lamento é que os 80 ou 90 por cento de diplomados que conseguem colocação profissional no estrangeiro vão ser empregados por conta de outrem. O país precisa é de iniciativa e é cá. Não estou a criticar que eles vão, não pode é ignorar-se que o maior capital que nós temos, que é o saber e o saber fazer, vai ser colocado à disposição de outrem. Vai ser empregado, em vez de impulsionar a dinâmica empresarial dentro de portas.

Eu acredito que o país precisa da mentalidade do Eusébio. Explico: O ex-jogador do Benfica deu uma entrevista onde revelava como é que conseguiu marcar um golo na baliza adversária de um ângulo quase impossível. Com uma franqueza desarmante, ele respondeu: «Vi buraco» (risos). É isto de que o país precisa. Iniciativa e capacidade de assumir o risco. Não é seguindo o caminho que estamos a trilhar que vamos vencer a crise que nos fez arrastar para a fronteira da pobreza.

 

Os portugueses são reconhecidamente ótimos profissionais quando demandam outras paragens. Não é positivo marcar uma imagem de prestígio além-fronteiras?

Não tenho dúvidas que estes nossos emigrantes vão ter sucesso, só que provavelmente não voltarão e, o mais grave, vão trabalhar por conta de outrem. O país empobrece. Sabe que eu sou muito crítico de os portugueses serem muito sebastianistas, porque acho estranho que tenham escolhido para patrono um rei que foi vencido. Eu sou mais partidário do Bartolomeu Dias. Porquê? Porque ele dobrou o Cabo da Boa Esperança e teve de virar para trás. Teimoso, acompanhou a viagem do Vasco da Gama, mas tinha ordem para voltar. Não voltou. Foi na viagem do Pedro Álvares Cabral. O barco foi ao fundo e ele morreu no mar, sem chegar à Índia. Eu escrevi num livro, «Bartolomeu Dias, um grande marinheiro que morreu, tentando». Porque ele estava à procura do «buraco», o mesmo que o Eusébio viu e marcou…

 

A democratização do acesso ao ensino superior está ameaçada pela crise económica e financeira. Podemos regredir para uma elitização do acesso ao ensino?

Isso é um problema. Eu acho que esta crise foi causada pelos erros da civilização ocidental e não especificamente por Portugal ou pela Europa. É o ocidente que está em causa. Os próprios Estados Unidos estão a ser atingidos. Veja que houve uma espécie de teologia do mercado que veio transformar-se em premissa de todas as atividades. É por isso que há uma anarquia na definição de quem é que manda e estabelece diretivas na própria estrutura europeia. Isto para lhe dizer que a filosofia do mercado também invadiu a área do ensino. Se ler os relatórios publicados do antigo CNAVES (Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior), entidade a que eu presidi, encontra lá frequentes advertências de que se está a transformar o ensino numa atividade subordinada à filosofia de mercado.

 

A obrigação de pagar propinas insere-se nesta filosofia?

Quando se chama às propinas receitas próprias deve entender-se que estamos a falar de taxas que são do direito financeiro. Isto transforma o aluno em cliente e eu não consigo olhar para alunos meus e considerá-los clientes. Há uma espécie de mentalidade que muda. O tema que o ensino é uma questão de soberania deve ser debatido com maior frequência. É evidente que a soberania muda, é evidente que tem de existir uma relação entre meios e objetivos. É evidente que Portugal passou por um processo de degradação que nos tornou, em primeiro lugar, um país exógeno, ou seja, sofreu consequências de acontecimentos em que não tinha participado. Na guerra de 1914-18, que foi custosíssima para o país, não tivemos parte nas causas, mas nos efeitos participámos de maneira severa. Depois, na guerra de 1939-45, não participámos nas causas, mas sofremos as consequências. O país precisa de olhar para isto.

 

Como podemos escapar ao condicionamento dos fatores exógenos?

Á medida que a sociedade se tornou complexa, o Estado português evoluiu de forma clara para o «Estado exíguo», inclusive cheguei a publicar um livro com esse nome. E isso significa falta de proporção entre recursos e objetivos. Não se olhou para isso e neste momento o país está em regime de protetorado. O que não podemos suprimir é o Estado Social porque na Constituição Portuguesa não é imperativo, é um principiologia. Suprimir o Estado Social seria atirar a esperança pela janela. Não se pode fazer.

 

Diz que a Europa é o nosso único amparo. Quer concretizar?

A Europa é para Portugal o centro do nosso apoio externo. Neste momento quem tem dimensão para estar no Conselho de Segurança da ONU não é a França, nem a Inglaterra. Nenhum destes países tem capacidade para enfrentar o globalismo. É a Europa como um todo, se se mantiver unida. O pior é que a Europa está a perder influência na cena internacional.

 

A Europa corre o risco de se tornar um museu onde o resto do mundo vem apenas visitar como meros turistas?

Se vierem…A Europa não está a cumprir os princípios dos homens que a fundaram, que acho que tinham uma certa aura de santidade. Os criadores da Europa tinham saído de uma guerra terrível e tiveram o engenho de transformar sofrimento em sabedoria. Eles perceberam que precisavam de se unir. Estou em crer se os princípios de solidariedade forem feridos a Europa perde a voz no mundo. A Europa tem que se afirmar como um bloco forte e representativo de uma região, como acontece na América do Sul, em África e até no Oriente, onde tem emergido um regionalismo poderoso e que tem capacidade de representação. Se o «velho continente» perder a unidade, também perde a voz. O que acontece é que as lideranças europeias são muito fracas e ainda o são mais quando evocamos as vozes encantatórias que foram as dos fundadores da Europa, depois de dois conflitos em que morreraram 50 milhões de pessoas. Extraordinário. Onde é que estão essas vozes inspiradoras, neste momento? Não temos.

 

O projeto europeu ainda corre riscos de sobrevivência?

Acontece com os países o que acontece também muito frequentemente com as pessoas. Eles conservam a convicção da sua superioridade quando já não a têm e é isso que em grande parte explica a composição atual do Conselho de Segurança da ONU e até a ausência das Nações Unidas em situações recentes fundamentais.

 

As Nações Unidas têm feito tudo o que está ao seu alcance?

Toda a gente aponta que a crise económica e financeira é mundial. Ouviu que tenham convocado o Conselho Económico e Social da ONU? Eu não. Se a crise é mundial, devia ter sido convocado. Não quero atribuir as culpas ao secretário geral da ONU, até porque ele tem o problema da gestão dos recursos. Mas repare que o emblemático «Programa do Milénio» também não será realizado. Os objetivos enunciados na conferencia do Rio de Janeiro também muito dificilmente serão alcançados. Eu por vezes digo, admito que algo exageradamente, que as Nações Unidas parecem evolucionar para tempos de oração a um deus desconhecido. É há problemas que subsistem se nada for feito. Relativamente à paz, a fome é tão ameaçadora como a bomba atómica. Os próprios Estados Unidos já dão mostras da falta de recursos. Quem são os donos da dívida soberana americana? A China. Por isso é que os americanos só têm olhos para o Pacífico. Deixe-me recordar-lhe que ainda há pouco a imprensa americana ficou muito alarmada com o facto de os chineses terem colocado o primeiro porta-aviões no mar. Quem dá este passo está a fazer grandes progressos do ponto de vista da capacidade estratégica. E quem consegue aliar a capacidade estratégica à capacidade financeira só pode ser uma grande potência. A China vai a caminho disso.

 

Direcionando a conversa para assuntos domésticos. Disse que «o credo dos mercados suplantou o credo dos valores». Pode dizer-se que este governo ganhou os mercados, mas perdeu o país?

Perdeu-se a escala de valores. A atitude da civilização ocidental guiava-se por valores essenciais que resumíamos na ideia da dignidade humana. Eu digo que cada homem, cada mulher, é um fenómeno irrepetível na história da Humanidade, o que faz de cada um de nós um valor único. Os valores instrumentais dizem respeito ao saber fazer e neste momento, o que acontece, é que o valor das coisas está substituído pelo preço das coisas. De tal maneira, que os homens começam a ser traduzidos em números. É uma espécie de voltar a ter confiança nas comunicações sem fios, porque a estatística é uma comunicação sem fios.

 

O aumento da carga fiscal para níveis nunca visto é a redução dos objetivos a números?

Não é possível dizer que é possível aumentar os impostos até onde for necessário. Eu entendo que há um limite para a carga fiscal. Numa entrevista televisiva perguntaram-me se eu achava que este aparente pacifismo da população que protestava não podia, um dia, descambar para a violência? A minha resposta foi esta, que mantenho: a fome não é um dever constitucional. Portanto, há um limite, que é a fadiga tributária.

 

Como é que os seus valores democratas-cristãos, a sua matriz politica, têm vindo a lidar com estas políticas neoliberais?

Deixe-me responder-lhe voltando ao Estado Social. Desde o Concílio Vaticano II que apareceu o apoio ao Estado social e colocou em evidência a responsabilidade dos pobres. O limite da dignidade humana devia ser um valor fundamental das democracias cristãs. Por isso é que sou frontalmente contra a supressão do Estado Social. E deixe-me fazer uma ressalva: o Estado Social resulta de uma convergência da Doutrina Social da Igreja com o socialismo democrático e até com o "Manifesto" do Karl Marx. Eu já desenvolvi o que costumo chamar, o poder da palavra contra a palavra do poder. O consequencialismo disso é sempre imprevisível. Acha que o Karl Marx imaginou o que aconteceria na Rússia quando escreveu o "Manifesto"? Não creio.

Nuno Dias da Silva
Expresso - Alberto Frias