Constantino Sakellarides, ex-diretor geral da saúde
Um novo vírus pandémico expande-se mais depressa que o nosso conhecimento sobre ele
Poucos sabem de saúde pública como ele.
Constantino Sakellarides perspetiva o que foi feito no combate à
pandemia até ao momento e identifica os três «polos» fundamentais
para uma gestão eficaz da transmissão da Covid-19.
Não é de agora a sua «preocupação» com o Serviço Nacional
de Saúde (SNS). Os últimos meses vieram demonstrar que se tem gasto
demasiado tempo com o debate sobre o financiamento do sistema e
prestado menos atenção às necessidades de recrutamento e alocação
de recursos humanos nos diversos setores de intervenção? Deve-se
enterrar, de uma vez por todas, a dicotomia entre público e
privado?
O SNS necessita substancialmente de mais recursos. E tem sido
feito um esforço considerável, nos últimos anos, para ir superando
o legado devastador do "cortar na saúde" dos anos da "troika": mais
financiamento, mais profissionais, mais equipamentos e melhores
instalações.
No entanto, seria importante que esta injeção de mais recursos,
este acrescentar, fosse acompanhado pelas transformações que o SNS
há muito vai requerendo, para responder aos desafios dos nossos
dias. Estes centram-se, em grande parte, nas situações associadas
ao envelhecimento da nossa população: a resposta às pessoas com
múltiplas patologias, disfunções e fragilidades que necessitam de
uma gestão atenta e oportuna do percurso que terão de fazer, sem se
perder, através dos vários tipos de cuidados de que
necessitam.
Os sistemas de saúde, quase universalmente, têm três setores de
características e objetivos distintos: o público, o privado social
e o privado com fins lucrativos. Reconhecer objetivamente o que os
distingue e o que os aproxima é a melhor forma de conseguir formas
apropriadas de colaboração entre estes três sectores, para o
benefício das pessoas, a curto e longo prazo.
É praticamente unânime considerar que fazer o
confinamento, tendo sido uma decisão politicamente difícil, foi
relativamente fácil de executar. Todavia, o desconfinamento revelou
falhas ao nível do planeamento. Faltou uma estratégia integrada e,
eventualmente, um pouco mais de paciência?
O confinamento geral foi um mal necessário, no período inicial da
pandemia. Permitiu proteger os mais suscetíveis à agressão
pandémica e manter os serviços de saúde a funcionar. Mas o preço
pago e a pagar é alto, em múltiplos aspetos.
A preparação do desconfinamento foi muito difícil. Porque o tempo
disponível foi muito limitado e porque ninguém sabia exatamente
qual seria a melhor maneira de o fazer bem - na história da saúde
pública moderna, nunca se tinha confinado e desconfinado assim
antes!
Mas há ainda uma terceira dificuldade de raízes mais profundas.
Como escreve o Professor Costa Silva, nas suas reflexões recentes,
o país tem múltiplas competências funcionais disponíveis, mas em
muito menor grau, as competências institucionais de que necessita.
Isto quer dizer que temos nas nossas organizações públicas uma
"primeira linha" de combate que se dedica aos desafios imediatos,
mas falta-nos, com frequência, uma "segunda linha" que avalie
resultados e pense o país no futuro. Sem esta "segunda linha" não
há pensamento, análise e planeamento estratégico, associado a um
processo de aconselhamento científico estruturado, contínuo e
independente. Neste contexto, aprender com a experiência é difícil
- e os poderes tendem aprender com dificuldade - pelo que tendemos
a "chegar tarde".
Numa crise destas dimensões, estas limitações tornam-se muito mais
aparentes. As múltiplas dificuldades na gestão da crise epidémica
na Grande Lisboa, no decurso da última primavera e verão, ilustram
bem essas limitações. Fizeram-se planos a curto prazo, com
importantes omissões, sem um Estratégia de Saúde Pública
(2020-2021) que os informasse e enquadrasse.
O que pode acontecer, por volta dos
meses de novembro/dezembro, quando a gripe sazonal e a Covid-19 se
encontrarem?
As pandemias (na sua forma mais aguda) têm sido, felizmente,
fenómenos relativamente raros - três, ao todo, no século XX. E
estas foram pandemia de gripe. A pandemia agora em curso é a
primeira produzida por um coronavírus. Por outras palavras, um novo
vírus pandémico expande-se mais depressa que o nosso conhecimento
sobre ele. Suspeitava-se de uma segunda vaga epidémica no outono e
inverno, quando arrefece, escurece e a vida nos "espaços
interiores" intensifica-se. Mas ela iniciou-se, em vários países
europeus, em pleno verão! Temos que ser sempre prudentes quando
tentamos falar no futuro de uma pandemia. Mas, felizmente, por
vezes, também há notícias menos más. A informação que temos
do último inverno no hemisfério sul, dos países onde esta
informação é de confiança, é que o que fazemos para nos proteger do
coronavírus, os três M's - metros, máscaras e mãos - são
particularmente eficazes na proteção da transmissão do vírus da
gripe sazonal. Ou seja, houve muito pouca gripe no hemisfério sul
este ano. Mas nunca fiando: é necessário conseguirmos uma boa
adesão à vacinação contra a gripe e os serviços de saúde estão a
preparar-se na gestão dos diferentes percursos dedicados a
diferentes tipos de doenças.
Não é possível prever quando é que a vacina contra a
Covid-19 vai estar disponível e muito menos se conhece a sua real
eficácia. Até que a pandemia seja oficialmente declarada pelas
autoridades sanitárias como estando ultrapassada, quais são os seus
conselhos, para decisores políticos e população em
geral?
Passarão, de facto, alguns meses ainda, antes da vacina pandémica
nos chegar ao braço. Entretanto, a resposta à pandemia terá
necessariamente três "polos".
O primeiro destes polos tem a ver com a forma como a rede de saúde
pública do país consegue controlar a transmissão do vírus:
diagnosticando os infetados e orientando-os para isolamento e
tratamento quando necessário; identificando os seus contactos,
testando-os, e quando indicado pondo-os de quarentena; testando
regularmente as populações mais expostas à infeção. Isto não só tem
que ser feito, mas tem que ser feito nos tempos próprios,
rapidamente. É importante quantificar e partilhar esse desempenho a
nível local, regional e nacional: os atos, os tempos e os
resultados. Quando esta rede de saúde pública já não consegue
responder suficientemente bem a uma elevada intensidade de
transmissão, isso deve ser do conhecimento dos outros dois polos.
Porque irá condicionar as suas opções.
E qual é o papel dos restantes polos?
O segundo destes polos tem a ver com os conhecimentos e
comportamentos das pessoas. Aqui o objetivo é conseguir, para cada
circunstância concreta, o melhor equilíbrio possível entre a
necessidade de proteção e o desejo de realizar as nossas aspirações
pessoais, intelectuais e afetivas. E só poderemos configurar esse
equilíbrio, se tivermos informação concreta sobre o que ocorres nos
outros dois polos, naquilo que diz respeito aos espaços da nossa
convivência.
O terceiro polo é constituído pelos cuidados de saúde. Estes
preparam-se melhor para o que os espera, quando mais informados
estiverem sobre o que ocorre nos outros dois polos. Dessa forma,
poderão preparar-se melhor para responder tanto à Covid-19 com às
outras necessidades de saúde.
Gerir bem a pandemia significa saber com precisão o que ocorre em
cada um desses polos, partilhar ativamente esta informação e
assegurar a articulação dos polos entre si, em todas as
circunstâncias. Um desafio complexo, mas necessário.
As medidas de higiene reforçadas nas escolas no âmbito da
prevenção da Covid-19 poderão, caso exista um padrão de
continuidade no futuro, ajudar a minorar os contágios em termos de
gripes e constipações? Portugal tem ainda um longo caminho a
percorrer no que diz respeito à literacia da sua população ao nível
da educação para a saúde?
Sim, temos ainda um longo caminho a percorrer nesta matéria. E
esta seria uma boa ocasião para conseguirmos aqui um salto
qualitativo significativo. Para isso, seria necessário aderimos à
ideia de que há duas vertentes na saúde pública atual.
A primeira é a saúde pública centralista, normativa e autoritária,
própria das situações de emergência. Recebemos orientações, para
obedecer. Há momentos que não pode ser de outra maneira. Mas isso
só é sustentável para períodos de tempo relativamente curtos - um
par de meses, talvez.
A segunda vertente da saúde pública, pelo contrário, não apela à
obediência, mas sim à inteligência individual e coletiva. Depende
da partilha contínua de informação de qualidade, de forma a que
esta se possa transformar em conhecimento e influenciar
comportamentos, ou seja, em agir com conhecimento de causa e
confiança.
De que modo é que essas duas vertentes se têm
articulado?
Como se tem observado estamos ainda longe de conseguir o
equilíbrio necessário entre estas duas vertentes da saúde
pública.
Nuno Dias da Silva
In Ensino Magazine
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