D. Januário Torgal Ferreira, bispo das Forças Armadas
A austeridade descasca as pessoas
Livre, frontal e polémico,
assim é D. Januário Torgal Ferreira, o bispo das Forças Armadas e o
rosto mais desassombrado da Igreja Católica portuguesa.
Tem 74 anos. Tem memória de
uma crise com estas proporções?
Francamente não tenho memória de
uma situação pior do que esta, ainda para mais em plena democracia.
Despertei muito cedo para as questões da justiça social, muito por
«culpa» do seminário e do papel de D. António Ferreira Gomes, que
foi Bispo de Portalegre. Repare que durante o longo período do
Estado Novo foram afloradas muitas questões do âmbito da liberdade
de opinião, reunião, direitos, liberdades e garantias, mas eram
sempre as questões sociais que vinham à tona. Perguntas básicas, do
tipo, como é que o sapateiro consegue viver? Como é que o padeiro e
o professor ganham tão pouco? Eram sempre as problemáticas da
justiça social que emergiam.
Acha que falta coração e
sensibilidade social aos políticos?
Isso tem a ver com o carácter e a
formação das pessoas. Dou-lhe o exemplo de Francisco Sá Carneiro,
natural da minha cidade, o Porto, e que foi presidente do PSD e
Primeiro-Ministro. Independentemente do partido a que pertencia,
admirei-o sempre e recordo a sua sensibilidade imensa por questões
de natureza social. Sá Carneiro, que era um defensor da liberdade e
católico - tinha de ser - afirmou que se houvesse uma crise nunca
deviam ser prejudicados nos seus direitos e garantias a classe
trabalhadora e mais empobrecida. Isto quer dizer alguma coisa.
Nunca imaginou que mais de
três décadas depois do 25 de Abril estivéssemos a retroceder
socialmente?
Nunca imaginei. Com o 25 de Abril
atingiu-se um patamar de conquistas sociais que estamos a perder,
com reflexos no nível de vida. Faço-lhe um desafio. Se consultar o
arquivo da revista «Visão», no dia 28 junho de 2001, na transição
de Guterres para Barroso, verá que foi publicado um dossier
intitulado «A crise», numa altura em que já se registavam inúmeros
cortes. Então, alertei as pessoas para o que estava a ser feito.
Por exemplo, num sector que conheço bem, as forças armadas, é
inadmissível que o governo queira participar numa missão
internacional e depois não consiga mobilizar os meios necessários
para executá-la. É um contra-senso. Bem sei que há muito
preconceito em relação às forças armadas e até há quem ache que as
mordomias são demais, o que é falso, mas as forças armadas estão
submetidas ao poder civil.
Recuou 12 anos no tempo,
até 2001. Uma eternidade…
Veja lá, até ao início deste
século. Mas nessa mesma revista, que tenho bem presente, também
podia citar um artigo de Sousa Franco, que foi ministro das
Finanças, em que ele afirma que num momento de crise, duas classes
não poderiam ser atingidas: a classe média e os pobres.
Curiosamente outro profundo católico, formado pela Doutrina Social
da Igreja.
Poucos minutos antes de começarmos
esta conversa, vi o senhor ministro das Finanças, entrar-me pela
casa a dentro através do ecrã do televisor para anunciar-me que
«vão ser necessárias décadas» para isto entrar nos eixos. Como é
que os pobres reagirão? Tiraram-lhes tudo. Eles são defendidos por
quem? Só se for por Cristo, porque são as figuras de primeiro plano
do Evangelho.
A Igreja, que por vezes é
acusada de ostentar em demasia, tem moral para fazer este
discurso?
A Igreja é um garante de
sensibilidade social, mas não tenho problema nenhum em reconhecer
que a Igreja devia ser, em alguns aspectos, mais simples e humilde.
Refiro-me a casas, automóveis, paramentos, etc.
Isso pode ajudar a
potenciar reacções menos racionais e mais emotivas da
população?
Relativamente à Igreja não, porque
o povo sabe que a Igreja é o ultimo reduto da defesa dos pobres e
dos mais carenciados. A missão da Igreja é muito importante para
ajudar as pessoas em situação de desamparo. Agora é um facto que as
pessoas estão agressivas, desiludidas e acham que foram enganadas
pelo actual governo por não terem apresentado os problemas
concretos com verdade. Foi-lhes prometido tudo e agora estão pior
do que antes.
Este governo é o
único responsável?
Eu não vou dizer que os que por lá
passaram não tiveram culpa. O que eu defendo é justiça social e
prioridade aos pobres. Devia existir uma equidade nos salários, nas
pensões, etc. É imoral haver pensões de 70 mil euros.
Como explica que os
políticos sejam inconsequentes nas suas promessas
eleitorais?
O problema que existe em Portugal é
que só se resolvem os problemas quando as medidas dão votos, só se
publicam leis favoráveis quando as eleições se aproximam, os
políticos aparecem, com ou sem boné, a dar beijinhos e abraços aos
populares apenas quando estão em campanha eleitoral. Não existe
proximidade com o povo. E mesmo que estes governantes quisessem
cultivar essa proximidade seria difícil, até pelo momento de
convulsão que atravessamos. Não posso admitir é que um povo seja
deseducado e rude relativamente a um governo legal e
democraticamente eleito. Mas o povo também é muito avisado
nestas situações e costuma dizer na sua eterna sabedoria, «quem
semeia ventos, colhe tempestades»…
Disse numa entrevista
recente que «a quebra da palavra dada é uma forma de corrupção».
Significa isto que os políticos que mentem são
corruptos?
Não tenho dúvidas que há uma
corrupção moral. A mentira é a corrupção da verdade. As pessoas
ficaram muitas escandalizadas quando eu disse que estes são
diabinhos e os outros anjos. Os outros não eram, de forma alguma,
anjos. Eu disse com ironia, queria revelar que estes ainda são
piores, porque prometeram reabilitar, pedindo tempo, e subitamente
introduzem austeridade, mendicidade e empobrecimento. Há um
aforismo clássico latino que diz assim: «A corrupção daquele que se
julga óptimo, é péssima».
Lembro-me bem que Passos Coelho,
quando era líder da oposição, disse a Sócrates, a propósito do PEC
IV: «Basta». E disse bem. E isso valeu-lhe muitos votos. Perante
isto, porque é que o bom povo português terá de apoiar agora o que
faz Passos Coelho? Assistimos à morte de uma organização e de uma
estrutura, assente numa certeza, num propósito e numa promessa.
Concorda com Medina
Carreira quando este diz que os actos eleitorais são autênticas
«burlas democráticas»?
Perfeitamente. Como sou livre e
frontal, recebi palmas e insultos por aquilo que disse na "TVI 24"
sobre a corrupção deste Governo. Eu não quero nem uma coisa nem
outra, eu quero simplesmente estar do lado da verdade O dr. Bagão
Félix , como é uma pessoa educada e bem formada, não quis usar o
termo «roubo», preferindo adoptar «confiscação», que é igualmente
um vocábulo forte e que significa que pessoas que andaram tantos
anos a descontar para o Estado sentem-se, de um dia para o outro,
ludibriados.
Perante isto, não nos podemos
admirar se eclodirem situações descontroladas. Já em 2008 falei
desta possibilidade, porque a situação já então era gravíssima. A
última manifestação do 15 de Setembro foi uma eloquente
demonstração de um comportamento sem mácula e uma cidadania
exemplar. O 15 de setembro foi aquilo que eu considero um;
verdadeiro plebiscito. E muitos não saíram à rua porque são amorfos
e timoratos, mas no dia seguinte foram os primeiros a juntar-se aos
que participaram, como se tivessem ganho.
A Igreja tem tido uma
postura prudente em temos de comunicação. D. José Policarpo disse
que a «rua não resolve nada». Subscreve?
Muito estimo as palavras do Cardeal
Patriarca, mas creio que a rua pode resolver, remotamente. Repare
que as pessoas saem à rua em busca de uma certa eficácia fruto das
suas acções. D. José Policarpo está a pensar em reformas e
soluções, mas, no fundo, a multidão que sai à rua quer dizer ao
governo que não está a ser ouvida. «Estamos a ser barbaramente
penalizados», «tenham pena de nós», «ajudem-nos». É isto que se
«diz» quando o povo vem para a rua. Se a estruturas democráticas
estão atentas à realidade, pelos menos dizem que não são surdas nem
mudas, então devem ouvir os gritos e responder aos clamores. Uma
manifestação é uma voz, um texto, uma mensagem. Não se lembra da
manifestação protagonizada por dezenas de milhares de professores
vindos de todo o país que desceram juntos a Avenida da Liberdade
contra as medidas do governo Sócrates? Não vi violência, nem
desmandos.
O papel da igreja é de
crescente complementaridade a um Estado a esvaziar-se de
funções?
O papel da Igreja é, para começar,
de grande sabedoria e de veicular uma atitude pedagógica para
refrear comportamentos violentos. Deve actuar com a Doutrina Social
da Igreja e não ter receio de defender os direitos. Mas não
gostaria de ver a igreja a contra-vapor, quando o vapor é a luta
pela justiça. A igreja deve ser uma locomotiva, abrir caminho.
Referiu o termo pedagogia.
Há um défice de pedagogia nos mais variados quadrantes da sociedade
em que nos inserimos?
Falta muita pedagogia e muita
lucidez. Veja que este governo não se preocupou em comunicar as
medidas de austeridade de forma metódica, organizada e sequencial.
O que vimos é um governo com uma crise de soluços e que insiste na
teoria de atirar o barro à parede a ver se pega. A estratégia é
apresentar de forma inicial um cenário apocalíptico, para depois ir
recuando aos poucos. Pinguinha a pinguinha, de forma matreira, um
típico tratamento de ingénuos.
O povo ainda acredita neste
governo?
Faz-me lembrar o caso daquele
elemento do casal que foi infiel e depois regressa, como se nada
fosse. Pode haver perdão, mas a marca da desconfiança não
desaparece. Uma parte significativa do povo português já não confia
e antevê a cada minuto um novo "tsunami". As pessoas andam
desconfiadas e isto é terrível. O crescimento económico depende da
confiança, mas para se registar crescimento cultural e psicológico
é rigorosamente igual. Se numa sala de aula um aluno interioriza
que o professor, tem qualquer coisa contra ele, este individuo é um
vencido logo à partida. Também aqui mais vale franqueza em
comunicar ideias.
Os professores e os
políticos deviam ser, pelo menos em tese, referências e formadores
de consciências. Pensa que estão a cumprir essa
função?
A ministra da Justiça afirmou,
durante a sua alocução nas jornadas parlamentares do PSD e do CDS,
que devia haver uma exigência ética para os políticos e que «nós
devemos ser um exemplo». Ela estava a "pregar" para os seus
colegas, numa altura em que um certo tipo de fazer política está
desacreditada. A política é o espelho da sociedade. Vivemos numa
sociedade desvalorizada e de contra-cultura, que resiste a
reflectir, quando existe gente sábia e capaz no país para o fazer.
É uma lástima termos uma geração fantástica do ponto de vista do
desenvolvimento científico, do saber e da aprendizagem, mas que não
é estimulada e apoiada como devia ser. Não posso compreender um
país que está a atirar jovens para fora das suas fronteiras.
O êxodo do capital humano
angustia-o?
É uma doença de personalidade
deixar o pai, a mãe e a restante família na terra natal,
abandonando os sonhos e as aspirações. Esta austeridade vai
"descascando" as pessoas, abatendo empresas, cortando com vocações
e tirando sonhos às pessoas na idade mais radiosa e mais
fascinante. Com isto estamos a gerar um grupo de revoltados.
Os reitores das
universidades têm denunciado que os cortes previstos para 2013
podem paralisar os estabelecimentos de ensino. A universidade como
centro de saber pode cair por terra?
Sabe que a Universidade portuguesa
é das instituições que mais me fascina e mais admiro no meu país.
Chegámos a uma altura em que estamos à beira do impedimento do
saber e da morte da aprendizagem. Temos centros investigação que
são um exemplo, com os seus recursos, meios e trabalho. Há casos
espantosos de estudo, publicações, convergência de grupos,
invenções, etc. Dispenso-me apresentar nomes para não ser injusto.
São pessoas que precisam de confiança e de co-responsabilidade,
ouvir dizer «não desistam». Perante o corte brutal no investimento,
é difícil escapar ao desânimo. Não quero cavar mais a falta de
esperança, mas não posso deixar de dizer que as capacidades
pensantes de um país estão hipotecadas.
Hipotecar as capacidades
pensantes é colocar em xeque o futuro da nação?
Portugal é um país selvagem, um
país subdesenvolvido, económico e cultural, mas continuo a
acreditar que as causas civilizacionais são de índole ética.
Vivemos num contexto em que a verdade e a mentira têm o mesmo peso.
Ter carácter e palavra já não possui o peso de outros tempos. Isto
é a falência ética e moral. Outrora a palavra de um homem valia
mais do que um documento do notário. Isto é mais do que mera
poesia.
Disse recentemente que
Portugal, como «país indefeso», precisa de «reconquistar a
independência económica e financeira». A solução é interna ou
europeia?
A chave para o problema é uma
solução europeia, mas a partir de Portugal. Temos de ser honestos
para aqueles que estão a ser calcados. Eles não foram responsáveis
pelo desaparecimento do dinheiro que agora estamos tentar pagar. Há
«cérebros» responsáveis pelo delapidar do património.
Esses «cérebros» têm
identidade?
Há muitos culpados e de há muito
tempo a esta parte. Foram os filhos da nação que deram cabo disto.
Eu não digo o nome deles, porque não tenho provas, senão ia à
Procuradoria-Geral da República. O «desvio colossal» foi provocado,
em primeiro lugar, por incompetência. Pensavam que o dinheiro dava
para tudo: estádios, auto-estradas, etc.
Esta crise vai educar
alguns e deseducar irremediavelmente a maioria?
Este dilúvio que se abateu sobre
Portugal está a ser pago pelos mais simples e pelos mais humildes.
A classe média está a desaparecer e os pobres são autênticos
miseráveis.
Nuno Dias da Silva
Este texto não segue o novo acordo ortográfico
Nuno Dias da Silva