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Jornal do Concelho de Oleiros | Francisco Carrega | Periodicidade: Trimestral | Novembro 2024 nº92 Ano XXIII
Fernando Pádua, cardiologista
O senhor coração

DSC00178.JPGLuta há mais de 50 anos contra a hipertensão arterial, pela prevenção das doenças cardiovasculares e o apoio à promoção da Saúde. Conhecido como «o homem do coração», em entrevista ao Oleiros Magazine deixou conselhos de grande utilidade para novos e velhos, para poupar dinheiro e vidas. Afinal, diz o médico, «nós somos aquilo que bebemos e comemos».

 

Os mais novos não se lembram, mas teve um programa que se chamava «O seu motor», com o José Manuel Tudela, onde dava conselhos à população, quando o País tinha níveis de iliteracia altos e se situava na cauda em termos de cuidados de saúde. Sente-se, de alguma forma, um precursor?

Ter um médico a falar aos portugueses no único canal de televisão que existia foi uma grande novidade, visto que estávamos em 1972. Esse programa era visto por cerca de 1 milhão de telespectadores. Durante meia hora eram dadas lições e conselhos básicos ao nível da prevenção de doenças através de uma linguagem acessível. Comparava-se o colesterol com o óleo do carro, o Castrol, a tensão arterial com a tensão dos pneus do carro, e o sedentarismo a um carro parado, que enferruja, necessitando de fazer uma rodagem regular. Pessoas de norte a sul, muitas delas que não tinham um médico na sua aldeia, juntavam-se diante de um televisor, os que o tinham, para ver e ouvir o programa. De lá para cá, o Portugal evoluiu muito nos índices estatísticos, mas há ainda muito trabalho e sensibilização pela frente.

 

Ficou conhecido como «o homem do coração» (que chegou a ser título de um livro) e pelas suas lutas anti-tabágicas. O seu lema é prevenir hoje, para não remediar amanhã. É fácil introduzir os valores da profilaxia junto do povo português, reconhecidamente avesso a mudar hábitos enraizados?

A natureza humana é toda ela resistente à mudança. Não são só os portugueses. A minha luta junto da população tem sido pela medicina preventiva, nomeadamente na minha faceta de cidadão, que também o sou, mesmo antes de ser cardiologista. Tenho constatado que as pessoas adoecem, em grande medida, por desconhecimento e por incorrerem em erros que seriam relativamente fáceis de evitar. Veja o caso das doenças silenciosas que só se manifestam quando a enfermidade já atingiu um estádio muito avançado. Tive um professor que dizia que em Portugal tudo começa na instrução primária. O mesmo é dizer, as doenças também. Actualmente, os miúdos começam a fumar pelos 11 anos e quando chegam a adultos gastam rios de dinheiro para se desabituarem do tabaco, recorrendo a técnicas várias, como o hipnotismo, a acumpuntura, a psiquiatria e agora já temos o cigarro electrónico. Já para não falar do aumento do consumo de álcool, especialmente nas jovens do sexo feminino. É um erro crasso, faz mal e muitas vezes acaba por matar ao volante.

 

É preciso sensibilizar a população para as vantagens de uma vida saudável?

Especialmente os mais jovens. É neles onde tudo começa e os hábitos também se começam a sedimentar. Fazer desporto ou um passeio diário a pé é fundamental. Contudo, há um aspecto que eu gostaria de enfatizar. Podia-se pensar que tinham sido os médicos, mas afinal foram as companhias seguradoras que descobriram que as causas das doenças residiam nos riscos, como a tensão alta, peso excessivo, o stress, etc. Nos anos 30, as seguradoras concluíram que era maior o risco de fazer o seguro de vida de uma pessoa gorda, do que de uma magra. Pela estatística, o mais gordo morria mais cedo, logo tinham de pagar mais. Em meados dos anos 50, logo depois de eu sair da faculdade, surgiu o problema do tabaco, associado ao cancro do pulmão. Hoje sabemos que é das maiores tragédias da Humanidade porque é a principal causa de morte do mundo dito civilizado.

 

A hipertensão continua a ser um «calcanhar de Aquiles» na saúde dos portugueses?

A habituação ao sal começa em bebé quando a mãe dá a sopinha com sal porque o bebé berra já que a comida lhe sabe mal. A prevalência do sal na nossa gastronomia tem razões históricas e culturais. O sal era a riqueza de séculos passados, e era o frigorífico e o conservador de alimentos. Os romanos recebiam muitas vezes o seu salário convertido numa dose de sal para ajudar em casa a conservar durante mais tempo a carne ou o peixe.

 

Portugal foi o primeiro país do mundo ocidental a ter uma lei que impõe limites ao teor de sal no pão. Produzir e vender pão com mais de 1,4 gramas de sal (por 100 gramas de produto final ou 0,55 gramas de sódio) passa a poder ser punido com coimas até cinco mil euros. Foi uma medida positiva?

Foi um bom princípio e mais um marco de evolução atingido. Contudo, o ideal para a saúde era que comêssemos menos de 5 gramas de sal por dia. O "nosso" alentejano ao comer 1 quilo de pão por dia come 3 vezes mais o sal que devia ingerir só com o pão. Isto sem contar com o sal que está contido na restante alimentação.

 

O enfoque da sua prevenção tem recaído na faixa etária sub-20. Como convencer os jovens a deixarem de comer fast food?

Não se muda de hábitos de um dia para o outro. É um processo lento, que até a própria indústria alimentar pode ajudar, mas o protagonismo para operar a mudança devia ser dos pais e não é. Deviam sensibilizar os filhos, mas o que acontece é que são os primeiros a fomentar a asneira. Os encarregados de educação demitiram-se deste papel e quem tem verdadeiramente a saúde das crianças na mão são os professores. Lamentavelmente retiraram-lhes o ensino de uma disciplina fundamental neste domínio, a Biologia, e em muitas escolas os ginásios disponíveis não apresentam condições mínimas para a prática desportiva. Em muitos casos, chove lá dentro.

 

As cadeias de fast food estão a fazer um grande esforço para alterar a ideia feita que só vendem comida nociva para a saúde, como por exemplo a McDonald's, passe a publicidade…

Em Inglaterra, ao lado dos restaurantes da McDonald's já há empresas a venderem sandwiches saudáveis. O próprio McDonald's tem-se adaptado às novas tendências, com produtos bem mais adequados a uma saúde equilibrada. Eu tenho uma mnemónica interessante para os mais jovens e que se baseia no «A, E, I, O, U». Assim, o «A» é de alimentação saudável, o E de exercício, o «I» a inibição de fumar, o «O» de «omissão do sal» e o «U» significa «Uma consulta anualmente». Estas etapas são cruciais para evitar as doenças da civilização que não são evitáveis num grau avançado. É preciso que as pessoas se consciencializem que somos aquilo que comemos e que bebemos. E vamos sempre a tempo de educar para a saúde. Os mais hábitos ganham-se, mas também se perdem.

 

Os portugueses reclamam que lhes falta informação. Existem campanhas de prevenção no terreno ou em preparação?

A Fundação Portuguesa de Cardiologia está a tomar conta da vila de Almodôvar, no Alentejo, em termos de promoção de saúde e prevenção dos bons hábitos nas crianças, nos adultos e nos idosos. Talvez por ser um meio pequeno, a nossa grande ajuda para passar a mensagem está a ser o papel desempenhado pelos professores que estão a promover rastreios às crianças. Os testes concluíram que 30 por cento de crianças têm defeitos de visão e 40 por cento têm problemas de audição. Andamos a batalhar contra o insucesso escolar, mas as causas do fracasso começam nestes indicadores. Há muito trabalho pela frente, mas estou apostado em fazer de Almodôvar o concelho mais saudável de Portugal.

 

Experiências como estas podem multiplicar-se de forma espontânea noutros recantos de Portugal?

Seria muito bom. Recentemente fui passar uns dias às Termas das Caldas da Felgueira, na zona de Viseu e um café da zona divulgou junto da população que eu iria fazer um passeio a pé durante a noite. Sabe quantas pessoas compareceram? 120. Fiquei espantado. As pessoas são capazes de mudar comportamentos se foram mobilizadas e se lhes for explicado que precisam de fazer diferente.

 

Que papel deve desempenhar o Ministério da Saúde num contexto de carestia financeira?

Seria bom que tivéssemos um genuíno Ministério da Saúde, porque o que temos tido em Portugal é o Ministério da Doença. Só estão preocupados em tratar das enfermidades. Já estive reunido com o actual ministro, Paulo Macedo, e o grande problema é que não há dinheiro. Os cortes são inevitáveis.

 

Os cortes no sistema nacional de saúde vão trazer riscos acrescidos na eficiência do serviço prestado aos utentes?

A resposta é: «Elementar, meu caro Watson». Por mais que se diga o contrário, não se pode contrariar uma evidência.

 

Subir impostos nos ginásios não é uma medida pouco amiga da saúde da população?

Não é uma medida que incentive o exercício, mas deixe que lhe reforce a minha ideia que o melhor exercício que existe é passear a pé. E isso é gratuito. Temos um slogan que é «atenção à tensão, pare de fumar e vá passear». Pondo em prática integralmente esta mensagem, metade da saúde está garantida.

 

Se a componente preventiva da saúde tivesse sido seguida há mais tempo teríamos poupado dinheiro e vidas?

Em 1972 comecei a minha luta pública contra a tensão em todos os sítios por onde passava, na rua, nos transportes, na televisão, nos corredores dos hospitais, etc. Acusaram-se de causar alarme social, mas o que acontece é que no espaço de uma década morreram menos 9 mil portugueses por ano de hipertensão. Já viu o sofrimento humano que se evitou e o dinheiro que foi poupado aos cofres do Estado?

 

DSC00177.JPGDiz que a economia em saúde tem sido sempre esquecida. Porquê?

Respondo-lhe com um exemplo: Na década de 80, conseguimos convencer o ministro da Saúde, Maldonado Gonelha, que era importante criar um instituto de cardiologia preventiva, em Portugal. Ele gostou da ideia, mas preferiu chamar uma equipa da Organização Mundial de Saúde (OMS) para avaliar a situação concreta do nosso País. O parecer foi esclarecedor e houve luz verde para avançar. No dia da inauguração disseram-me que o instituto ia ser, para além da cardiologia preventiva, também de prevenção da saúde, com especial enfoque para o problema das doenças crónicas não transmissíveis. Como outros distritos recusaram, muito por causa de guerra entre os ministérios da Saúde e da Educação, o programa-piloto CINDIM esteve 15 anos, apenas em Setúbal, como zona de demonstração. Estou certo que se perdeu uma boa hipótese para alargar este projecto a todo o País - E tão necessário que era.

 

As doenças oncológicas têm registado um aumento exponencial nos últimos anos. Como explica?

Primeiro que tudo, as doenças do foro oncológico têm muitos pontos de contacto com as doenças cardíacas. O tabaco é um dos principais causadores do cancro, bem como uma deficiente alimentação. Comer mais vegetais combate o cancro dos intestinos e colo-rectais. Se se usasse toda a prevenção cardiovascular em termos de doenças crónicas evitávamos 80 por cento dos internamentos hospitalares. Estou certo que teríamos infraestruturas hospitalares em excesso para a procura. Nas próximas eleições, com ou sem troika, virá um governo que se puder vai construir mais hospitais, em vez de apostar na medicina preventiva. É confrangedor ver que há milhares de portugueses sem médicos de família. O médico de proximidade é o clínico mais importante na medicina.

 

Como justifica esta carência de meios humanos? É um problema de gestão?

Considero que existe um problema na distribuição dos médicos de família. Se a pessoa tivesse direito a escolher o seu clínico haveria uma selecção natural que fazia com que todos os médicos tivessem trabalho. O conselho que dou aos utentes é que se agarrem a um médico que confiem como se fosse um tesouro. O médico é o melhor remédio que os doentes têm.

 

Concorda com o recrutamento de médicos estrangeiros para os nossos hospitais?

Acredito que a livre circulação de médicos por toda a Europa é benéfica. Não concordo é que se chamem médicos de fora quando cá temos muitos clínicos no desemprego e outros que se reformaram porque estavam desmotivados. Se são precisos mais médicos, precisamos mais faculdades e vice-versa. Não podemos é formar só por formar. É como deixar os pacientes em macas nos corredores dos hospitais à espera que se lembrem deles.

 

O recurso às novas tecnologias leva a que muitos médicos se limitem a debitar os sintomas do doente que têm em frente para um computador, que depois indica a medição recomendada. Como médico muito experimentado que é, como vê este sinal dos tempos?

A ligação médico-doente tem vindo a perder-se com a introdução das novas tecnologias, primeiro com o computador, agora, mais recentemente, com a receita electrónica. É um sinal dos tempos, mas acaba por ser compreensível que quando o médico tem duas dezenas de pacientes na sala de espera não pode perder meia hora a ouvir todos os doentes. Os papéis desapareceram e o reflexo é alguma desumanização no relacionamento entre médico e doente. Faz confusão, nomeadamente a algumas pessoas mais idosas que precisam de mais atenção para os seus problemas. Imagine como é que esta gente vai fixar os nomes da vasta gama de genéricos que temos. Só para o colesterol e a tensão há mais de meia centena de remédios diferentes, para o mesmo fim. Só muda a cor, a forma dos comprimidos e os enganos são frequentes.

Texto : Nuno Dias da Silva

Foto: Nuno Dias da Silva

Nuno Dias da Silva
Nuno Dias da Silva