Fernando Pádua, cardiologista
O senhor coração
Luta há mais de 50 anos contra a
hipertensão arterial, pela prevenção das doenças cardiovasculares e
o apoio à promoção da Saúde. Conhecido como «o homem do coração»,
em entrevista ao Oleiros Magazine deixou conselhos de grande
utilidade para novos e velhos, para poupar dinheiro e vidas.
Afinal, diz o médico, «nós somos aquilo que bebemos e comemos».
Os mais novos não se
lembram, mas teve um programa que se chamava «O seu motor», com o
José Manuel Tudela, onde dava conselhos à população, quando o País
tinha níveis de iliteracia altos e se situava na cauda em termos de
cuidados de saúde. Sente-se, de alguma forma, um
precursor?
Ter um médico a falar aos
portugueses no único canal de televisão que existia foi uma grande
novidade, visto que estávamos em 1972. Esse programa era visto por
cerca de 1 milhão de telespectadores. Durante meia hora eram dadas
lições e conselhos básicos ao nível da prevenção de doenças através
de uma linguagem acessível. Comparava-se o colesterol com o óleo do
carro, o Castrol, a tensão arterial com a tensão dos pneus do
carro, e o sedentarismo a um carro parado, que enferruja,
necessitando de fazer uma rodagem regular. Pessoas de norte a sul,
muitas delas que não tinham um médico na sua aldeia, juntavam-se
diante de um televisor, os que o tinham, para ver e ouvir o
programa. De lá para cá, o Portugal evoluiu muito nos índices
estatísticos, mas há ainda muito trabalho e sensibilização pela
frente.
Ficou conhecido como «o
homem do coração» (que chegou a ser título de um livro) e pelas
suas lutas anti-tabágicas. O seu lema é prevenir hoje, para não
remediar amanhã. É fácil introduzir os valores da profilaxia junto
do povo português, reconhecidamente avesso a mudar hábitos
enraizados?
A natureza humana é toda ela
resistente à mudança. Não são só os portugueses. A minha luta junto
da população tem sido pela medicina preventiva, nomeadamente na
minha faceta de cidadão, que também o sou, mesmo antes de ser
cardiologista. Tenho constatado que as pessoas adoecem, em grande
medida, por desconhecimento e por incorrerem em erros que seriam
relativamente fáceis de evitar. Veja o caso das doenças silenciosas
que só se manifestam quando a enfermidade já atingiu um estádio
muito avançado. Tive um professor que dizia que em Portugal tudo
começa na instrução primária. O mesmo é dizer, as doenças também.
Actualmente, os miúdos começam a fumar pelos 11 anos e quando
chegam a adultos gastam rios de dinheiro para se desabituarem do
tabaco, recorrendo a técnicas várias, como o hipnotismo, a
acumpuntura, a psiquiatria e agora já temos o cigarro electrónico.
Já para não falar do aumento do consumo de álcool, especialmente
nas jovens do sexo feminino. É um erro crasso, faz mal e muitas
vezes acaba por matar ao volante.
É preciso sensibilizar a
população para as vantagens de uma vida saudável?
Especialmente os mais jovens. É
neles onde tudo começa e os hábitos também se começam a sedimentar.
Fazer desporto ou um passeio diário a pé é fundamental. Contudo, há
um aspecto que eu gostaria de enfatizar. Podia-se pensar que tinham
sido os médicos, mas afinal foram as companhias seguradoras que
descobriram que as causas das doenças residiam nos riscos, como a
tensão alta, peso excessivo, o stress, etc. Nos anos 30, as
seguradoras concluíram que era maior o risco de fazer o seguro de
vida de uma pessoa gorda, do que de uma magra. Pela estatística, o
mais gordo morria mais cedo, logo tinham de pagar mais. Em meados
dos anos 50, logo depois de eu sair da faculdade, surgiu o problema
do tabaco, associado ao cancro do pulmão. Hoje sabemos que é das
maiores tragédias da Humanidade porque é a principal causa de morte
do mundo dito civilizado.
A hipertensão continua a
ser um «calcanhar de Aquiles» na saúde dos
portugueses?
A habituação ao sal começa em bebé
quando a mãe dá a sopinha com sal porque o bebé berra já que a
comida lhe sabe mal. A prevalência do sal na nossa gastronomia tem
razões históricas e culturais. O sal era a riqueza de séculos
passados, e era o frigorífico e o conservador de alimentos. Os
romanos recebiam muitas vezes o seu salário convertido numa dose de
sal para ajudar em casa a conservar durante mais tempo a carne ou o
peixe.
Portugal foi o primeiro
país do mundo ocidental a ter uma lei que impõe limites ao teor de
sal no pão. Produzir e vender pão com mais de 1,4 gramas de sal
(por 100 gramas de produto final ou 0,55 gramas de sódio) passa a
poder ser punido com coimas até cinco mil euros. Foi uma medida
positiva?
Foi um bom princípio e mais um
marco de evolução atingido. Contudo, o ideal para a saúde era que
comêssemos menos de 5 gramas de sal por dia. O "nosso" alentejano
ao comer 1 quilo de pão por dia come 3 vezes mais o sal que devia
ingerir só com o pão. Isto sem contar com o sal que está contido na
restante alimentação.
O enfoque da sua prevenção
tem recaído na faixa etária sub-20. Como convencer os jovens a
deixarem de comer fast food?
Não se muda de hábitos de um dia
para o outro. É um processo lento, que até a própria indústria
alimentar pode ajudar, mas o protagonismo para operar a mudança
devia ser dos pais e não é. Deviam sensibilizar os filhos, mas o
que acontece é que são os primeiros a fomentar a asneira. Os
encarregados de educação demitiram-se deste papel e quem tem
verdadeiramente a saúde das crianças na mão são os professores.
Lamentavelmente retiraram-lhes o ensino de uma disciplina
fundamental neste domínio, a Biologia, e em muitas escolas os
ginásios disponíveis não apresentam condições mínimas para a
prática desportiva. Em muitos casos, chove lá dentro.
As cadeias de fast food
estão a fazer um grande esforço para alterar a ideia feita que só
vendem comida nociva para a saúde, como por exemplo a McDonald's,
passe a publicidade…
Em Inglaterra, ao lado dos
restaurantes da McDonald's já há empresas a venderem sandwiches
saudáveis. O próprio McDonald's tem-se adaptado às novas
tendências, com produtos bem mais adequados a uma saúde
equilibrada. Eu tenho uma mnemónica interessante para os mais
jovens e que se baseia no «A, E, I, O, U». Assim, o «A» é de
alimentação saudável, o E de exercício, o «I» a inibição de fumar,
o «O» de «omissão do sal» e o «U» significa «Uma consulta
anualmente». Estas etapas são cruciais para evitar as doenças da
civilização que não são evitáveis num grau avançado. É preciso que
as pessoas se consciencializem que somos aquilo que comemos e que
bebemos. E vamos sempre a tempo de educar para a saúde. Os mais
hábitos ganham-se, mas também se perdem.
Os portugueses reclamam que
lhes falta informação. Existem campanhas de prevenção no terreno ou
em preparação?
A Fundação Portuguesa de
Cardiologia está a tomar conta da vila de Almodôvar, no Alentejo,
em termos de promoção de saúde e prevenção dos bons hábitos nas
crianças, nos adultos e nos idosos. Talvez por ser um meio pequeno,
a nossa grande ajuda para passar a mensagem está a ser o papel
desempenhado pelos professores que estão a promover rastreios às
crianças. Os testes concluíram que 30 por cento de crianças têm
defeitos de visão e 40 por cento têm problemas de audição. Andamos
a batalhar contra o insucesso escolar, mas as causas do fracasso
começam nestes indicadores. Há muito trabalho pela frente, mas
estou apostado em fazer de Almodôvar o concelho mais saudável de
Portugal.
Experiências como estas
podem multiplicar-se de forma espontânea noutros recantos de
Portugal?
Seria muito bom. Recentemente fui
passar uns dias às Termas das Caldas da Felgueira, na zona de Viseu
e um café da zona divulgou junto da população que eu iria fazer um
passeio a pé durante a noite. Sabe quantas pessoas compareceram?
120. Fiquei espantado. As pessoas são capazes de mudar
comportamentos se foram mobilizadas e se lhes for explicado que
precisam de fazer diferente.
Que papel deve desempenhar
o Ministério da Saúde num contexto de carestia
financeira?
Seria bom que tivéssemos um genuíno
Ministério da Saúde, porque o que temos tido em Portugal é o
Ministério da Doença. Só estão preocupados em tratar das
enfermidades. Já estive reunido com o actual ministro, Paulo
Macedo, e o grande problema é que não há dinheiro. Os cortes são
inevitáveis.
Os cortes no sistema
nacional de saúde vão trazer riscos acrescidos na eficiência do
serviço prestado aos utentes?
A resposta é: «Elementar, meu caro
Watson». Por mais que se diga o contrário, não se pode contrariar
uma evidência.
Subir impostos nos ginásios
não é uma medida pouco amiga da saúde da população?
Não é uma medida que incentive o
exercício, mas deixe que lhe reforce a minha ideia que o melhor
exercício que existe é passear a pé. E isso é gratuito. Temos um
slogan que é «atenção à tensão, pare de fumar e vá passear». Pondo
em prática integralmente esta mensagem, metade da saúde está
garantida.
Se a componente preventiva
da saúde tivesse sido seguida há mais tempo teríamos poupado
dinheiro e vidas?
Em 1972 comecei a minha luta
pública contra a tensão em todos os sítios por onde passava, na
rua, nos transportes, na televisão, nos corredores dos hospitais,
etc. Acusaram-se de causar alarme social, mas o que acontece é que
no espaço de uma década morreram menos 9 mil portugueses por ano de
hipertensão. Já viu o sofrimento humano que se evitou e o dinheiro
que foi poupado aos cofres do Estado?
Diz que
a economia em saúde tem sido sempre esquecida. Porquê?
Respondo-lhe com um exemplo: Na
década de 80, conseguimos convencer o ministro da Saúde, Maldonado
Gonelha, que era importante criar um instituto de cardiologia
preventiva, em Portugal. Ele gostou da ideia, mas preferiu chamar
uma equipa da Organização Mundial de Saúde (OMS) para avaliar a
situação concreta do nosso País. O parecer foi esclarecedor e houve
luz verde para avançar. No dia da inauguração disseram-me que o
instituto ia ser, para além da cardiologia preventiva, também de
prevenção da saúde, com especial enfoque para o problema das
doenças crónicas não transmissíveis. Como outros distritos
recusaram, muito por causa de guerra entre os ministérios da Saúde
e da Educação, o programa-piloto CINDIM esteve 15 anos, apenas em
Setúbal, como zona de demonstração. Estou certo que se perdeu uma
boa hipótese para alargar este projecto a todo o País - E tão
necessário que era.
As doenças oncológicas têm
registado um aumento exponencial nos últimos anos. Como
explica?
Primeiro que tudo, as doenças do
foro oncológico têm muitos pontos de contacto com as doenças
cardíacas. O tabaco é um dos principais causadores do cancro, bem
como uma deficiente alimentação. Comer mais vegetais combate o
cancro dos intestinos e colo-rectais. Se se usasse toda a prevenção
cardiovascular em termos de doenças crónicas evitávamos 80 por
cento dos internamentos hospitalares. Estou certo que teríamos
infraestruturas hospitalares em excesso para a procura. Nas
próximas eleições, com ou sem troika, virá um governo que se puder
vai construir mais hospitais, em vez de apostar na medicina
preventiva. É confrangedor ver que há milhares de portugueses sem
médicos de família. O médico de proximidade é o clínico mais
importante na medicina.
Como justifica esta
carência de meios humanos? É um problema de gestão?
Considero que existe um problema na
distribuição dos médicos de família. Se a pessoa tivesse direito a
escolher o seu clínico haveria uma selecção natural que fazia com
que todos os médicos tivessem trabalho. O conselho que dou aos
utentes é que se agarrem a um médico que confiem como se fosse um
tesouro. O médico é o melhor remédio que os doentes têm.
Concorda com o recrutamento
de médicos estrangeiros para os nossos hospitais?
Acredito que a livre circulação de
médicos por toda a Europa é benéfica. Não concordo é que se chamem
médicos de fora quando cá temos muitos clínicos no desemprego e
outros que se reformaram porque estavam desmotivados. Se são
precisos mais médicos, precisamos mais faculdades e vice-versa. Não
podemos é formar só por formar. É como deixar os pacientes em macas
nos corredores dos hospitais à espera que se lembrem deles.
O recurso às novas
tecnologias leva a que muitos médicos se limitem a debitar os
sintomas do doente que têm em frente para um computador, que depois
indica a medição recomendada. Como médico muito experimentado que
é, como vê este sinal dos tempos?
A ligação médico-doente tem vindo a
perder-se com a introdução das novas tecnologias, primeiro com o
computador, agora, mais recentemente, com a receita electrónica. É
um sinal dos tempos, mas acaba por ser compreensível que quando o
médico tem duas dezenas de pacientes na sala de espera não pode
perder meia hora a ouvir todos os doentes. Os papéis desapareceram
e o reflexo é alguma desumanização no relacionamento entre médico e
doente. Faz confusão, nomeadamente a algumas pessoas mais idosas
que precisam de mais atenção para os seus problemas. Imagine como é
que esta gente vai fixar os nomes da vasta gama de genéricos que
temos. Só para o colesterol e a tensão há mais de meia centena de
remédios diferentes, para o mesmo fim. Só muda a cor, a forma dos
comprimidos e os enganos são frequentes.
Texto : Nuno Dias da Silva
Foto: Nuno Dias da Silva
Nuno Dias da Silva
Nuno Dias da Silva